#13
O problema do tempo é como a escuridão do céu. Cada evento está inscrito no seu próprio tempo. Os eventos podem aglomerar-se e os seus tempos sobreporem-se, mas o tempo comum entre eventos não se prolonga como lei além da aglomeração.
#12
Somos ambos contadores de histórias. Deitados de costas, olhamos para o céu noturno. Aqui é onde as histórias começam, debaixo da égide dessa multidão de estrelas que à noite furtam certezas e às vezes as devolvem como fé. Os que primeiro inventaram e depois nomearam as constelações eram contadores de histórias. Traçar uma linha imaginária entre um aglomerado de estrelas deu-lhes uma imagem e uma identidade. As estrelas enfiadas nessa linha eram como eventos numa narrativa. Claro que imaginar as constelações não mudou as estrelas nem a escuridão vazia que as rodeava. O que mudou foi a maneira como as pessoas liam a noite.
#11
No quarto coloquei-o numa folhas, no cimo da cómoda. Quando apaguei a luz, o pirilampo voltou a brilhar. Nas parte de trás do toucador havia um espelho virado para a janela. Se me deitasse de lado, via uma estrela reflectida no espelho e o pirilampo por baixo, na cómoda. A única diferença entre ambos era que a luz do pirilampo era um pouco mais verde, mais glaciar, mais longínqua.
#10
Uma noite, a andar pelo campo perto de Prijedor na Bósnia, encontrei um pirilampo, com a sua luz verde-âmbar, debaixo de umas ervas. Agarrei-o e levei-o no meu dedo onde brilhava como uma opala num anel. Quando me aproximei da casa, as outras luzes eram muito fortes e apagaram a dele.
#9
Desta vez era só o pato, parado, no meio da estrada, a sacudir com as patas o pó, com a cabeça baixa. Demorou cerca de um minuto para me aperceber que estava às costas da pata, esta totalmente invisivel. Estendeu as asas uma ou duas vezes que apareceram debaixo das patas dele, antes de se sentar de novo, no pó. As estocadas dele tornaram-se mais rápidas. Finalmente, tendo atingido o climax, o pato caiu da pata, que se tornou visível. Ele caiu pelo lado, para a estrada. Caiu como se tivesse levado um tiro, deitado de lado. Um pequeno saco cinzento com a forma de um pássaro, inerte na estrada, como se cheio de chumbo. Ela olhou à volta, levantou-se, bateu as asas, esticou o pescoço e partiu, confiante que as crias iriam encontrá-la.
#8
Tinha visto a família toda várias vezes. Instalavam-se frequentemente num monte de relva debaixo dos arbustos, no lado oposto ao cemitério. A primeira vez que vi as luzes do cemitério ao nascer do dia, reparei nos patos a andar na relva verde-noite. Uma pata, um pato e seis patinhos.
#7
Uma aldeia nas colinas, não muito longe de Pistoria. O cemitério da aldeia era rectangular, rodeado por paredes altas, com portões de ferro forjado. À noite a maioria das tumbas estavam iluminadas, cada uma com uma vela. Mas as velas eram eléctricas, e eram ligadas com as luzes da rua. Ardiam toda a noite e eram muito mais do que os candeeiros de rua na aldeia. Passando o cemitério, a estrada levava a uma quinta. Nesta estrada de pó eu vi um dos patos cinzentos.
#6
O animal a seguir é um gato. Um gato completamente branco. Pertencia a uma cozinha com um chão desnivelado, uma chaminé aberta, uma mesa de madeira partida e paredes brancas rugosas. Contra as paredes, o gato era quase invisível, excepto pelos seus olhos negros. Quando virava a cabeça, desaparecia na parede. Quando saltava pelo chão ou para a mesa, era como uma criatura que tivesse escapado das paredes. A maneira como aparecia e desaparecia dava-lhe a intimidade misteriosa de um deus doméstico. Eu sempre achei que os deuses das casas são animais. Uma vezes visíveis, outras invisíveis, mas sempre presentes. Quando me sentava à mesa, o gato saltava-me para as pernas. Tinha dentes brancos afiados, tão brancos quanto o pelo. E uma língua cor-de-rosa. Como todos os gatos, jogava continuamente: com a própria cauda, com as costas das cadeiras, com restos no chão. Quando queria descansar procurava alguma coisa macia para se deitar nela. E olhando-o, fascinado, por uma semana, eu observei que sempre que podia escolhia algo branco - uma toalha, uma camisola, roupa lavada. Depois, com os olhos e a boca fechados, enrolado, tornava-se invisivel, rodeado de paredes brancas.
#5
Momentos mais tarde, a lebre voltou a correr para a estrada, desta vez perseguida por meia dúzia de homens, que ainda assim corriam muito mais devagar que ela e que tinham o ar de terem acabado de se levantar de uma refeição. A lebre correu para cima, em direcção aos penhascos e ao primeiro pedaço de neve. O alfandegário gritava instruções para a apanharem - e eu segui caminho, e passei a fronteira.
#4
ERA UMA VEZ
O primeiro era uma lebre. A dois mil metros numa fronteira da montanha. Onde é que vais? perguntou o oficial da alfândega francesa. Para Itália, respondi. Porque é que não paraste? perguntou. Pensei que me chamarias, respondi. E nesse momento tudo foi esquecido porque uma lebre atravessou a estrada a correr, dez jardas à nossa frente. Era uma lebre magra, com tufos da cor de fumo castanho na ponta das orelhas. E embora corresse devagar, corria pela sua vida. Às vezes isso pode acontecer.
O primeiro era uma lebre. A dois mil metros numa fronteira da montanha. Onde é que vais? perguntou o oficial da alfândega francesa. Para Itália, respondi. Porque é que não paraste? perguntou. Pensei que me chamarias, respondi. E nesse momento tudo foi esquecido porque uma lebre atravessou a estrada a correr, dez jardas à nossa frente. Era uma lebre magra, com tufos da cor de fumo castanho na ponta das orelhas. E embora corresse devagar, corria pela sua vida. Às vezes isso pode acontecer.
#3
A Parte Um é sobre o Tempo
A Parte Dois é sobre o Espaço
1/
Quando abro a minha carteira
para mostrar os meus documentos
para pagar
ou ver o horário de um comboio
olho para a tua cara.
O polén das flores
é mais antigo do que as montanhas
Aravis é novo
para uma montanha.
Os óvulos das flores
ainda darão sementes
quando Aravis, agora envelhecido
não for mais que uma colina.
A flor é o coração
da carteira, a força
que nos deixa
viver além da montanha.
E as nossas caras, meu coração, breves como fotografias.
A Parte Dois é sobre o Espaço
1/
Quando abro a minha carteira
para mostrar os meus documentos
para pagar
ou ver o horário de um comboio
olho para a tua cara.
O polén das flores
é mais antigo do que as montanhas
Aravis é novo
para uma montanha.
Os óvulos das flores
ainda darão sementes
quando Aravis, agora envelhecido
não for mais que uma colina.
A flor é o coração
da carteira, a força
que nos deixa
viver além da montanha.
E as nossas caras, meu coração, breves como fotografias.
#2
Gostava de expressar a minha solidariedade para com o Transnational Institute, em Amesterdão, e o Policy Studies Institute, em Washington, D.C. e agradecer-lhes o seu apoio e encorajamento durante os anos que este livro levou a ser pensado e escrito. Queria também agradecer à New Society, de Londres, e ao The Village Voice, de Nova Iorque, por terem publicado uma série de artigos nos quais elaborei algumas das ideias para este livro. Finalmente quero agradecer ao Anthony Barnett, pela sua ajuda crítica.
Subscrever:
Mensagens (Atom)