#106

A inabilidade de recordar é talvez uma memória em sim mesma. Já vivemos com a experiência da não nomeação: haviam algumas forças elementares - calor, frio, dor, doçura - que eram reconheciveis. Assim como algumas pessoas. Mas não haviam verbos ou nomes. Até o primeiro pronome foi mais uma convicção que cresceu do que um facto, e por causa desta falta, as memórias (distintas do funcionamento da memória) não existiam.

#105

Ser confortado depois de chorar. As partes de baixo do estomâgo param de soprar. Uma doçura quieta, como mel liquido, acumula-se no peito. Apenas o telhado da boca continua dorido. A causa inexplicável desapareceu inexplicavelmente.

#104

Raiva. Enchendo de gritos uma caverna de medo e cólera. Os gritos, como folhas vermelhas, flutuam no ar, independentes de nós próprios, e no entanto pousam em nós, cobrem-nos a face, provocando mais gritos. 

#103

Uma vez na infância

Polegar na boca enquanto o sono chega. Como o sono, o sabor do nosso corpo envolve-nos. Nenhum mal pode vir do nosso próprio corpo.

#102

Se nós, contadores de histórias, somos Secretários da Morte, é porque, nas nossas breves vidas mortais, somos os afinadores destas lentes.