#132

Diferentemente, o amor ideal é conter tudo. "Aqui eu entendo" escreveu Camus, "o que chamam de glória: o direito a amar sem limites." Esta ilimitação não é passiva, pois a totalidade que o amor reclama constantemente é precisamente a totalidade que o tempo parece fragmentar e esconder. O amor é uma reconstituição no coração desse segurar que é o Ser.

#131

Toda a vida é criada e contida no encontro destas duas forças opostas. Falar desse "conter" é outra forma de definir o ser. O que é  tão desconcertante e misterioso sobre o Ser é que representa tanto a quietude como o movimento. A quietude de uum equilíbrio criado pelo movimento de duas forças opostas.  
A força da sexualidade está para sempre por acabar, nunca está completa. Ou antes, acaba apenas para recomeçar, como se fosse a primeira vez.
 

#130

O impulso sexual para reproduzir e preencher o futuro é um impulso contra a corrente temporal que flui incessantemente em direcção ao passado. A informação genética que assegura que a reprodução funciona contra a dissipação. O animal sexual - como um grão de milho - é um condutor do passado para o futuro. A escala desse alcançe num milénio, e a distância coberta por esse curto circuito temporal que é a fertilização são tais, que a sexualidade - mesmo para os homens e as mulheres - é impessoal. A mensagem encolhe o mensageiro. A força impessoal da sexualidade opõe-se à passagem impessoal do tempo e é-lhe antitética.

#129

Se não houvesse envelhicimento, se o tempo e a sua passagem não estivessem inscritos no código da vida, a reprodução seria desnecessária e a sexualidade inexistente. Que a sexualidade é o salto das espécies por cima da morte, sempre foi claro; é uma das verdades que precede a filosofia.

O amor insiste em dar um salto comparável por cima da morte, mas por definição este não pode ser um salto da espécie, porque o amado constitui a mais particular e diferenciada imagem de que a imaginação humana é capaz. Cada cabelo da tua cabeça.

#128

Os Adãos e as Evas
Continuamente expulsos
e com que tenacidade
voltando à noite!

Antes,
Quando aqueles dois
não contavam
e não havia meses
nem nascimentos nem música
os seus dedos não estavam numerados. 

Antes,
Quando aqueles dois não contavam
sentiam
um formigueiro atrás dos olhos
uma sede na garganta
para algo mais que
o perfume das flores infinitas
e a respiração de animais imortais?

no seu sono sossegado
será que a ponta das suas línguas
procurava o rebento de um outro sabor
mortal e suado?
Sentiriam inveja do desejo
daqueles que vieram depois da Queda?

Mulheres e homens ainda voltam para iludir através da noite
todo aquele tempo por contar.
E com a pontualidade
do primeiro esquadrão de fuzilamento
a expulsão acontece ao nascer do dia.

#127

Muitas das explicações cosmológicas do mundo propuseram, tal como a teoria da entropia, um estado original ideal e depois, para o homem, uma situação de deterioração constante. A Idade do Ouro, o Jardim do Edén, o Tempo dos Deuses... tudo estava longe do presente estado de miséria.


Que a vida possa ser olhada como uma queda, é intrínseco à faculdade humana da imaginação. Imaginar é conceber a altura a partir da qual a queda se torna possível.

#126

Questionar a finalidade do princípio da entropia não é disputar a segunda lei da termodinâmica. Dentro de um determinado sistema, esta e outra leis da termodinâmica podem aplicar-se ao que se revela dentro do tempo. São leis dos processos temporais. É a sua finalidade que pode ser disputada.

O processo de uma entropia crescente termina com o calor-morte. Começa com um estado máximo de energia, que em termos astrofísicos é pensado como uma explosão. A teoria precisa de um início e de um fim; ambos encaram o que está para além do tempo. A teoria da entropia, em última análise, trata o tempo como um parêntesis, e no entanto não tem nada a dizer, e eliminou tudo o que poderia ser dito, sobre o que precedee e o que se segue ao parêntesis. Ali está a sua inocência.

#125

A transformação moderna do tempo, de condição em força, começou com Hegel. No entanto, para ele, a força da história era positiva; raramente houve um filósofo tão optimista. Mais tarde, Marx quis provar que esta força - a força da história - estava sujeita às acções e escolhas humanas. O constante drama presente no pensamento de Marx, a oposição original da sua dialética, nasce do facto de ele aceitar tanto a moderna transformação do tempo em força suprema, como desejar devolver esta supremacia às mãos do homem. É por isto que o seu pensamento era - em todos os sntidos da palavra - gigante. O tamanho do homem - o seu potencial poder - iria substituir o atemporal, acreditava Marx.


Hoje, no ocidente, à medida que a cultura do capitalismo abandona a sua pretensão de ser uma cultura e transforma-se em nada mais que uma Prática Instantânea, a força do tempo é imaginada como um aniquilador supremo e sem oposição.  O planeta terra e o universo estão a esgotar-se. A desordem cresce a cada passagem de uma unidade temporal. O estado final de entropia máxima, onde não haverá nenhuma actividade, é chamado de calor-morte.

#124

De agora em diante, só alguém  a quem adiaram a sentença de morte pode imaginar a vida como uma dádiva. E a aposta famosa de Pascal - Deus pode não existir, podemos estar perdidos, mas supondo que existe... - é um estratagema para afirmar esta sentença de morte e depois ter a esperança de uma prorrogação.

A era moderna da quantificação começa com a álgebra e as série infinitas. Segue-se que já não contamos o que temos, mas o que não temos. Tudo se perde.

O conceito da entropia é a figura da Morte traduzida num princípio cientifico. No entanto onde a morte era pensada como a condição da vida, a entropia, é mantido, vai eventualmente esgotar e extinguir, não apenas vidas, mas a vida em si. E a entropia, como lhe chamou Eddington, é a "seta do tempo".

#123

No séc. XVII, Pascal reconheceu a extensão da ruptura sem precedentes, causada pelos novos cáculos. Com o avanço  impiedoso do tempo e do espaço, o passado perde-se e cai no nada. ( a palavra  neant é usada pela primeira vez no sentido absoluto, no séc. XVII). Deus abandona a vida, para habitar o domínio eterno da morte. Não mais presente no ciclos do tempo, não mais o  eixo destes ciclos, torna-se uma presença em espera e ausente. Todos os cálculos sublinham quanto é que ele já esperou ou vai esperar. As provas da sua existência deixam de ser a manhã, a estação do ano que volta, o recém-nascido; tornam-se antes a "eternidade" do céu e do inferno e a finalidade do último julgamento. O homem fica condenado ao tempo, que já não é uma condição da vida e logo algo sagrado, mas o princípio inhumano que não poupa nada. O tempo transforma-se tanto numa sentença e como num castigo.

#122

Para medir as distâncias astronómicas modernas, usamos como unidade a distância que a luz viaja num ano. A magnitude destas distâncias, o grau de separação que implicam, parece quase ilimitada; a magnitude e o grau escapam a tudo, excepto ao puro cálculo e até este tem a qualidade de uma explosão. No entanto, escondido no sistema conceptual que permite ao homem medir e conceber tal  ilimitação, está o ano, unidade local e cíclica , que pode ser reconhecida pela sua permanência, repetição e consistência local. O cálculo volta do astronómico para o local, como um filho pródigo.

Esta fraqueza da mente, esta nostalgia que não pode nem vai abandonar o aqui e agora, pode ser interpretada de duas maneiras. Pode ser vista como a revelação de uma fraqueza que prova o quão perdido e impotente o homem está no universo; ou pode ser vista como o vestígio, preservado na estrutura da mente humana, da verdade original.

#121

A corrente principal do pensamento moderno retirou o tempo da sua unidade e transformou-o numa força activa todo-poderosa e singular. Ao fazê-lo, transferiu o carácter espectral da morte para a noção de tempo em si. O Tempo tornou-se a Morte, triunfante sobre tudo.

#120

Mais cedo, no entanto, a morte era também pensada como a companheira da vida, como a pré condição do que se fez Ser do Não-ser; uma não era possível sem a outra. Como resultado, a morte foi qualificada por aquilo que não podia destruir ou aquilo que não retornaria.


A brevidade da vida é continuamente lamentada. O tempo era o agente da morte e um dos constituintes da vida. Mas o eterno - o que a morte não pode destruir - era outro. Todas as visões cíclicas do tempo mantêm estes constituintes juntos: a roda que gira e o chão no qual roda.

#119

Antes, a dimensão insubmissa era permitida. Está presente em todas as visões cíclicas do tempo. Nesse dias, o tempo passava, ia, e fazia-o apenas por rodar sobre si mesmo, como uma roda. No entanto, para uma roda girar tem que haver uma superfície como o chão que resiste, que oferece atrito. Foi contra esta resistência que a roda rodou. Visões cíclicas do tempo são baseadas num modelo onde estão em jogo duas forças: a força tempo a mover-se numa direcção, e a força resistente a esse movimento.

O corpo envelhece. O corpo prepara-se para morrer. Nenhuma teoria do tempo oferece um adiamento. A morte e o tempo foram sempre aliados. O tempo leva mais ou menos lentamente: a morte mais ou menos de repente.

#118

O conteúdo do tempo, o que o tempo carrega, parece implicar outra dimensão. Quer lhe chamemos a quarta, a quinta ou até (em relação ao tempo) a terceira não é importante, e depende apenas do modelo espaço-tempo que estamos a usar. O que importa é que a dimensão é insubmissa ao fluir regular e uniforme do tempo. Pode haver uma percepção na qual o tempo não varre tudo à sua frente. Assegurar que o faz foi um artigo de fé específico do século dezanove.

#117


Quanto mais profunda a experiência de um momento, maior a acumulação de experiência. É por isto que o momento é vivido como mais longo. Verifica-se a dissipação do fluir temporal. A duração do vivido não é uma questão de comprimento mas de profundidade ou intensidade. Proust compreendeu isto.


Mas esta não é apenas uma verdade cultural. Um equivalente natural ao aumento periódico da densidade do vivido pode ser encontrado naqueles dias em que o sol e a chuva se alternam, na primavera ou no início do verão, quando as plantas crescem, de forma quase visível, alguns milímetros ou centímetros por dia. As horas de crescimento espectacular e de acumulação são desproporcionais às horas de inverno, quando a semente está inerte na terra.

#116

Apesar dos relógios e do girar regular da Terra, o tempo é experimentado como passando a diferentes ritmos. Esta impressão é normalmente rejeitada como subjectiva, porque o tempo, de acordo com a visão novecentista, é objectivo, incontestável, e indiferente: a sua indiferença não tem limites.


Mas talvez a nossa experiência do tempo não deva ser rejeitada tão rapidamente. Supondo que uma pessoa aceita os relógios, o tempo não acelera ou abranda. Mas o tempo passa a diferentes ritmos porque a nossa experiência do seu passar envolve não um mas dois processos dinâmicos opostos: a acumulação e a dissipação.

#115

De tudo o que foi herdado do século dezanove só alguns axiomas sobre o tempo passaram sem questionamento, A Esquerda e a Direita, evolucionistas, fisicistas e a maioria dos revolucionários, todos aceitaram - pelo menos a uma escala histórica - a visão novecentista de um "fluir" temporal uni-linear e uniforme. 


No entanto a noção uniforme do tempo, dentro do qual todos os eventos podem ser temporalmente relacionados, depende de uma capacidade de síntese da mente. Galáxias e partículas não propôem nada em si. Há um problema fenomelógico de base. Somos obrigados a dar inicio à experiência consciente.

#114

"O tempo do Dante é o conteúdo da história sentido como um único acto sincrónico. E inversamente, o desígnio da história é manter o tempo junto de forma a serem todos irmãos e companheiros na mesma demanda e conquista do tempo" (Osip Mandel'shtam)

#113

Talvez no começo
o tempo e o visível, 
marcadores gémeos da distância,
tenham chegado juntos,
bêbados
a bater com força à porta
antes do amanhecer.


À primeira luz ficaram sóbrios
e examinando o dia,
falaram
do distante, do passado, do invisível.
Falaram dos horizontes
que rodeiam tudo
o que ainda não desapareceu.

#112

UMA VEZ NO PASSADO
A nossa morte já é a nossa. Não pertence a mais ninguém, nem mesmo a um assassino.O que significa que já faz da vida. Não apenas no sentido em que pode ser antecipada e que nos preparamos para ela, mas no sentido em que o seu conteúdo já está, pelo menos em parte, determinado. No passado, isto era a chave da clarividência. Mais tarde, a reivindicação da liberdade desacreditou todo o determinismo. A noção de liberdade absoluta acompanhou o nascimento do tempo histórico linear. A liberdade era o único consolo. No entanto, só quando o tempo é unilinear é que a previsão de um evento futuro ou a pré-existência de um destino, implicam determinismo, e logo a perca crucial da liberdade. Se houver uma pluralidade de tempos, ou se o tempo for cíclico, a profecia e o destino podem coexistir com a liberdade de escolha. 

#111

No posto dos correios vi, no olho da minha mente, os teus dedos a desatarem o nó que dei em Auxonne.
Dez dias mais tarde parei outra vez na cidade e fui ao posto dos correios, desta vez para te mandar uma carta. Lembro-me do dia em que te enviei a encomenda e senti uma pequena dor de perda. O que tinha eu perdido? A encomenda chegou em segurança. Tinhas feito sopa com as beterrabas. E arrumaste na prateleira a garrafa de água destilada das flores de laranjeira, acima dos teus vestidos no armário. O que se tinha perdido era o pequeno futuro da encomenda. O que lamentamos nos mortos é a perca das suas esperanças. O homem-com-a-encomenda  estava como morto; não podia ter mais esperanças. O homem-com-a-carta tinha-o substituído.

#110

A primeira vez foi para te enviar uma encomenda; quando a encarregada a pesou na balança, imaginei a tuas mãos a abri-la.
"Quatro quilos e trezentas gramas"
Numa encomenda, embrulhada à mão, há uma mensagem que não pesa nada: os dedos de quem recebe podem desatar os nós dados por quem enviou.

#109


UMA VEZ EM AUXONNE

O posto de correios de Auxonne é pequeno e a encarregada tem olhos azuis. Só lá fui duas vezes.

#108

O meu coração nascido nu
foi enfaixado em canções de embalar.
Mais tarde só vestiu
poemas como roupas.
Como uma camisola
eu carregava às costas
a poesia que tinha lido.


Assim vivi por meio século
até nós nos encontrarmos mudos.


Da minha camisola nas costas da cadeira
aprendi hoje à noite
quantos anos
de decorar com o coração
eu esperei por ti.

#107

Já vivemos a experiência perfeita do não discurso. Um estado do que é contínuo. O sonho mais recente de uma linguagem ideal, que diria tudo em simultâneo, talvez comece na memória desse estado sem memórias.

#106

A inabilidade de recordar é talvez uma memória em sim mesma. Já vivemos com a experiência da não nomeação: haviam algumas forças elementares - calor, frio, dor, doçura - que eram reconheciveis. Assim como algumas pessoas. Mas não haviam verbos ou nomes. Até o primeiro pronome foi mais uma convicção que cresceu do que um facto, e por causa desta falta, as memórias (distintas do funcionamento da memória) não existiam.

#105

Ser confortado depois de chorar. As partes de baixo do estomâgo param de soprar. Uma doçura quieta, como mel liquido, acumula-se no peito. Apenas o telhado da boca continua dorido. A causa inexplicável desapareceu inexplicavelmente.

#104

Raiva. Enchendo de gritos uma caverna de medo e cólera. Os gritos, como folhas vermelhas, flutuam no ar, independentes de nós próprios, e no entanto pousam em nós, cobrem-nos a face, provocando mais gritos. 

#103

Uma vez na infância

Polegar na boca enquanto o sono chega. Como o sono, o sabor do nosso corpo envolve-nos. Nenhum mal pode vir do nosso próprio corpo.

#102

Se nós, contadores de histórias, somos Secretários da Morte, é porque, nas nossas breves vidas mortais, somos os afinadores destas lentes.

#101

Aqueles que lêem ou ouvem as nossas histórias vêem tudo como se através de uma lente. A lente é o segredo da narração, e planta-se como nova a cada história, entre o temporal e o intemporal.


#100

O tempo, e logo a história, pertencem-lhes. No entanto o significado da história, o que faz com que valha a pena ser contada, é o que podemos ver e o que nos inspira, porque estamos além desse seu tempo. 

#99

O que nos separa dos personagens sobre os quais escrevemos não é o conhecimento, seja este subjectivo ou objectivo, mas a experiência deles do tempo, na história que estamos a contar. Esta separação dá-nos, a nós contadores, o poder de saber o todo. No entanto, esta separação deixa-nos igualmente sem poderes: não podemos controlar os nossos personagens, depois da narração ter começado. Somos obrigados a segui-los, através e no tempo, no qual eles estão a viver e que nós controlamos.





#98

A noção de que a vida, vivida, é uma história, é uma noção recorrente. O racionalismo rejeitou esta noção propondo a inelutável mecanicidade das leis da natureza. A maioria das investigações científicas recentes tendem a sugerir que o trabalho natural dos processos do universo se parecem mais com os de um cérebro que de uma máquina. Pensar um tal "cérebro" como um narrador - embora muitos cientistas acusem este pensamento de ser demasiado antropomórfico - tornou-se possível. A metafísica do contar histórias deixou de ser apenas uma preocupação literária.



#97

É por isto que o tráfego entre o contar de histórias e a metafisica é contínuo.

#96

UMA VEZ ATRAVÉS DE UMA LENTE

Imaginemos que uma personagem de uma das histórias que tu e eu escrevemos, tenta num dado momento da história, imaginar a sua origem e antever além do que sabe do seu destino . As suas perguntas, as suas especulações leva-lo-iam a hipóteses (infinito, acaso, indeterminação, livre arbítrio, espaço e tempo curvos...) muito semelhantes aos que os pensadores chegam quando especulam sobre o universo.

#95

Tudo estava a mudar. As três pereiras, o outeiro delas, o outro lado do vale, os campos cultivados, as florestas. As montanhas eram maiores, todas as árvores e campos mais próximos. Tudo o que era visível se aproximou de mim. Ou melhor, tudo se aproximou do lugar onde eu tinha estado, pois eu já não estava ali. Eu estava em todo o lado, tanto na floresta do outro lado do vale como na pereira morta, tanto na face da montanha como no campo onde colhia o feno.

#94

Até te conhecer não teria sido capaz de nomear a transformação que estava a acontecer. Hoje, com a minha idade avançada, eu nomeio-a - a fusão do amor.
 
 

#93

As três pereiras pareciam diferentes. A articulação de cada ramo tinha-se tornado aparente, eu conseguia ver como cada folha se movia. (durante toda a tarde os ventos do sul e do norte concorreram um com o outro em brisas gentis e breves, raramente maiores que um fôlego.) O chão debaixo das pereiras tinha mudado.

#92

Quando um homem surpreende um animal, ou vice versa, o rastro do seu olhar exclui momentaneamente tudo o resto. Foi assim, exceptuando que entre o animal e o homem há normalmente uma igualdade na presença, e ali estava eu consciente de uma desigualdade. Eu estava menos presente que o canto da paisagem que me observava.

#91

Pouco depois tive a sensação de que estava a ser observado. Por um instante acreditei que alguém estava no outeiro, ou que um rapaz tinha subido a uma das pereiras. A morta estava ladeada pelas duas vivas. Mas não estava lá ninguém.

#90

Este pequeno canto de paisagem - no qual eu nunca tinha reparado em particular - chamou-me a atenção e agradou-me. Agradou-me como uma cara em particular que vemos passar numa rua, desconhecida, até vulgar, mas que por alguma razão agrada por causa do que sugere sobre uma vida que está a ser vivida.

#89

UMA VEZ NA VIDA



Começou com um pequeno outeiro, um pouco acima e para norte do campo onde eu colhia o feno. Neste outeiro estavam três pereiras abandonadas, duas em plena folhagem e a outra com a madeira cinzenta, sem folhas e morta. Atrás delas, o céu azul com grandes nuvens brancas.

#88

Um marinheiro recebe uma carta
de mil versts de distância.
A mulher escreveu
que na casa deles
atrás das colinas
ela é feliz.

E é a carta dela
durante as noites com raparigas
em portos intraduziveis,
através do mar dos meses
que persuade o marinheiro maldito
que a sua viagem sem fim
vai acabar.

#87

A linguagem da arte pictórica, porque é estática, é a linguagem dessa intemporalidade. Mas aquilo de que fala - ao contrário da geometria - é do sensual, do particular e do éfemero.

#85

Os termos desta explicação parecem-se ser demasiado restritivos e ao mesmo tempo demasiado estéticos. Tem que haver valor neste contraste flagrante: o contraste entre a forma pintada imutável e a dinâmica do modelo vivo.

#84

Uma composição musical, sendo que usa o tempo, é obrigada a um princípio e um fim. Uma pintura só tem princípio e fim porque é um objecto físico: dentro do seu imaginário não há princípio nem fim. É isto que torna possível a composição pictórica, a harmonia e a forma.

#83

Dizer que as pinturas profetizam a experiência de serem olhadas não responde à questão. Tais profecias assumem um interesse contínuo na imagem estática. Porque é que, pelo menos até recentemente, tal assunção é justificável? A resposta convencional é que, por ser estática, a pintura tem o poder de estabelecer uma harmonia visual "palpavél". Só algo estático pode ser simultaneamente composto e desta forma completo.

#82

Contudo porque é que as imagens estáticas da pintura são tão imperativas? O que previne a pintura de ser evidentemente inadequada - só porque é estática?

#81

Todas as pinturas acabadas, tenham um ou cinco anos, são agora profecias recebidas do passado, sobre aquilo que o espectador está a ver na tela no presente momento. Às vezes a profecia gasta-se rapidamente - a pintura perde o seu foco; outras vezes mantém-se verdade persistentemente.

#80

Alguns pintores quando estão a trabalhar têm o hábito de estudar a sua pintura no espelho, quando esta já alcançou um determinado estádio. O que eles vêm é a imagem invertida. Quando questionados sobre como é que isto os ajuda, dizem que lhes permite olhar a pintura de novo, com um olho mais fresco. O que vislumbram no espelho é talvez um pouco o aspecto da pintura nesse momento futuro ao qual ele se dirige.

#79

O pintor ser um simples praticante ou um mestre não faz qualquer diferença neste destino da pintura. A diferença está naquilo que a pintura dá: em quão perto o momento em que é olhada, tal como previsto pelo pintor, corresponde aos interesses dos momentos em que é olhada por outras pessoas, quando as circunstâncias que rodeiam a sua produção (mecenato, moda, ideologia) foram alterados.

#78

Quando é que uma pintura está finalmente acabada? Não quando corresponde a alguma coisa que já existe - como o segundo sapato do par - mas quando o momento ideal em que vai ser olhada está preenchido, tal como o pintor o sente ou calcula que deve ser. O processo, curto ou longo, de pintar uma pintura é o processo da construção desse momento. Claro que o-momento-em-que-a-pintura-é-olhada não pode ser completamente previsto e desta forma completamente preenchido pela pintura. No entanto toda a pintura é, pela sua própria natureza, destinada a esse momento.  

#77

Na arte Renascentista inicial, nas pinturas de culturas não-europeias, em certas obras modernas, a imagem implica uma passagem de tempo. Olhando para ela, o espectador vê o Antes, o Durante e o Depois. O sábio chinês caminha de uma árvore para outra, a carruagem atropela a criança, o nu desce as escadas.  No entanto, as imagens seguintes são ainda estáticas quando se referem ao mundo dinâmico além das suas arestas e isto coloca o problema de qual o significado deste estranho contraste entre o estático e o dinâmico. Estranho porque é ao mesmo tempo flagrante e tido como certo.

#76

Uma pessoa pode sentir-se tentada a dizer que as pinturas preservam um momento. No entanto reflectindo melhor, isso não é obviamente verdade. Pois o momento da pintura, contrariamente ao momento fotografado, nunca existiu como tal. Logo não se pode dizer que uma pintura o preserve.

#75

UMA VEZ NUMA PINTURA


As pinturas são estáticas. A singularidade da experiência de olhar uma pintura repetidamente - por um período de dias ou anos - é que, no meio do fluxo, a imagem mantém-se inalterada. Claro que o significado da imagem pode mudar, resultado de eventos históricos ou pessoais, mas o que é representado é imutável: o mesmo leite jorra do mesmo jarro, as ondas do mar têm exactamente as mesmas formações por rebentar, o sorriso e a cara que não se alteram.

#74

Ela ainda não dormiu. O seu olhar segue-o enquanto ele se aproxima. Na cara dela estão os dois reunidos. Agora é impossível separar as duas imagens: a imagem dele dela na cama, como ele a recorda: a imagem dela dele enquanto o vê a aproximar-se da cama. É de noite.

#73

Inclinada para a frente sobre as almofadas, ela levanta as cortinas com a parte de trás da mão, pois a palma, a cara da mão, está já a dar as boas vindas, já a fazer um gesto que é preparatório do acto de tocar a cabeça dele. 

#72

Um colar está pendurado sobre os peitos dela, 
e entre eles demora-se -
no entanto, é uma demora
e não uma chegada incessante? -
o perfume do para sempre.
Um perfume tão antigo como o sono,
tão familiar aos vivos como aos mortos.

#71

À noite, eles abandonam o seu século.

#70

Daqui a dois anos, à luz do dia, Van Rijn vai declarar-se falido. Dez anos antes, à luz do dia, Hendrickje veio trabalhar na casa de Van Rijn como ama do seu filho bebé. À luz das obrigações morais flamengas do século XVII e do Calvinismo, a governanta e o pintor têm responsabilidades distintas e separadas. Daí a reticência.

#69



Na pintura  Mulher na Cama há uma cumplicidade entre mulher e pintor. Esta cumplicidade inclui reticência e abandono, dia e noite. A cortina da cama, que Hendrickje levanta com a sua mão, marca a fronteira entre o tempo do dia e o tempo da noite.

#68

Existem outras pinturas de Hendrickje. Perante a "Bathsheba" no Louvre, ou a "Woman Bathing" na National Gallery (Londres) quedo-me mudo. Não porque a sua genialidade me iniba, mas porque a experiência da qual derivam e que expressam - o desejo a experimentar-se a si mesmo como algo tão antigo como o mundo, a ternura a experimentar-se como o fim do mundo, a redescoberta infinita dos olhos, como se fosse a primeira vez, do seu amor por um corpo familiar - tudo isto vem e vai além das palavras. Nenhumas outras pinturas nos levam tão habilmente e poderosamente, ao silêncio. No entanto, em ambas, Hendrickje está absorvida nas suas acções. Na visão do pintor sobre ela há a maior intimidade, mas não há uma intimidade mútua entre ambos. São pinturas que falam do amor dele, não do dela.

#67

A Mulher na Cama (de Edinburgh) foi pintada, pelas minhas contas, um pouco antes ou um pouco depois do nascimento de Cornelia. Os historiadores sugerem que talvez seja um fragmento tirado de um trabalho maior que representaria a noite de casamento de Sarah e Tobias. Um tema bíblico, para Rembrandt, era sempre contemporâneo. Se é um fragmento, é certo que Rembrandt o terminou, e o entregou finalmente ao espectador, como a sua pintura mais íntima da mulher que amava.

#66

Ela tinha menos dez ou doze anos que ele. Quando ela morreu tinha, pela evidência da pintura, pelo menos quarenta e cinco anos, e quando ele a pintou pela primeira vez não teria mais do que vinte e sete anos. A filha de ambos, Cornelia, foi baptizada em 1654. Isto significa que Hendrickje deu à luz a filha quando estava na casa dos trinta.

#65

Uma vez em Amesterdão


É estranho como, às vezes, os historiadores de arte ao tentar datar algumas pinturas, dão tanta atenção ao "estilo", aos inventários, aos recibos, às listas de leilões e tão pouco à evidência pintada da idade do modelo. Como se não confiassem no pintor neste ponto. Por exemplo, quando tentam datar e organizar cronologicamente as pinturas de Hendrickje Stoffels do Rembrandt. Nenhum pintor foi mais conhecedor do processo do envelhecimento e mais nenhum pintor nos deixou um registo tão intimista do grande amor da sua vida. O que quer que as conjunturas documentais digam, as pinturas deixam claro que o amor entre Hendrickje e o pintor durou cerca de vinte anos, até à morte dela, seis anos antes da dele.



#64

Falar da promessa da poesia seria enganador, pois uma promessa projecta-se no futuro e é precisamente a coexistência do futuro, do presente e do passado que a poesia propõe. Uma promessa que se aplica ao presente e ao passado assim como ao futuro deve antes ser chamada de garantia.

#63

Se a poesia por vezes fala da sua própria imortalidade, é uma afirmação mais vasta que a do génio de um poeta em particular numa história cultural particular. A imortalidade aqui deve distinguir-se da fama póstuma. A poesia pode falar da imortalidade porque se abandona à linguagem, na crença de que a linguagem abarca toda a experiência, o passado, o presente e o futuro.

#62

O poeta coloca a linguagem além do alcance do tempo: ou, mais precisamente, o poeta aproxima-se da linguagem como se esta fosse um lugar, um ponto de encontro, onde o tempo não tem finalidade, onde o tempo é englobado e contido.

#61

Que um poema possa usar as mesmas palavras que um relatório de uma empresa não significa mais do que o facto que um farol e uma cela de prisão possam ser construídos com blocos de pedra da mesma pedreira, juntos pela mesma argamassa. Tudo depende da relação entre as palavras. E a soma total de todas as possíveis relações depende de como o escritor se relaciona com a linguagem, não como vocabulário, nem como sintaxe, nem mesmo como estrutura, mas como princípio e presença.

#60

No entanto a poesia usa as mesmas palavras, e mais ou menos a mesma sintaxe que, por exemplo, o Relatório Geral Anual de uma corporação multinacional. (Corporações que preparam, para o seu próprio lucro, alguns dos mais terríveis campos de batalha do mundo moderno). Então como pode a poesia transformar tanto a linguagem que, em vez de apenas comunicar informação, ouve e promete e preenche o papel de um deus?

#59

Os poemas estão mais próximos de orações do que de histórias, mas na poesia não há ninguém a quem se reze além da linguagem. É a linguagem em si mesma que deve ouvir e reconhecer. Para o poeta religioso, a Palavra é o primeiro atributo de Deus. Em toda a poesia as palavras são uma presença antes de serem um meio de comunicação.

#58

Os poemas, independentemente do resultado final, atravessam campos de batalhas, tratam dos feridos, ouvem os monólogos loucos dos triunfantes ou dos assustados. Trazem uma espécie de paz. Não pela anestesia ou pelo conforto fácil, mas pelo reconhecimento e a promessa de que aquilo que foi experienciado não pode desaparecer como se nunca tivesse existido. No entanto a promessa não é a de um monumento (Quem, no campo de batalha, quer monumentos?). A promessa é que a linguagem reconhece, dá abrigo à experiência que pediu, que gritou.

#57

UMA VEZ NUM POEMA

Os poemas, mesmo quando são narrativos, não se parecem com histórias. Todas as histórias são sobre batalhas, de um tipo ou outro, que acabam em vitória e derrota. Tudo se move em direcção ao fim, quando o resultado será conhecido. 

#56

Às vezes queria escrever um livro
Um livro todo sobre o tempo
Sobre como este não existe,
Como o passado e o futuro
São um presente contínuo.
Penso que todas as pessoas - os que vivem,
os que viveram
e os que ainda viverão - estão vivos agora. 
Gostaria de desmontar este tema em pedaços,
Como um soldado desmonta a sua espingarda.


escreveu Yevgeny Vinokurov.

#55

Eu vi o futuro como o cego via o seu caminho na aldeia.

#54

Os homens e mulheres em frente da Câmara, onde a Tricolor voava, eram agora uma imagem na mente dos seus descendentes. Tinham adquirido o mistério e a estabilidade do passado. Tinham alcançado uma espécie de imcompletude completa.  Esperavam ser acabados pelo conhecimento e acções dos descendentes. E ao mesmo tempo estavam completos pois tinham-se completado a si mesmos: não podiam fazer mais. 

#53

Vi a rua da aldeia naquele momento, como se a olhasse do futuro. O que via tinha-se tornado num passado distante. Esta transformação foi calma, tão calma que parecia quieta.

#52

Às 11 da manhã estava sol e o céu azul. As escassas nuvens brancas moviam-se rapidamente sobre as montanhas. Uma nortada.

#51

Eu vi apenas a rua da aldeia, que me era tão familiar que poderia caminhá-la com os olhos vendados se tivesse um pau. Um homem cego morreu há uns anos atrás. Cego à nascença, andava pela aldeia vindo do lugarejo a quatro quilómetros dali, onde vivia. As abelhas que tinha davam mais mel que quaisquer outras da aldeia. E cortava a sua lenha com um machado, sem nunca ter cortado a mão. 

#50

16 de Julho de 1981, 11 horas. Eu não vi as cidades do futuro ou as suas tecnologias. Nem vi o colapso destas cidades. O que eu vi nada tinha a ver com profecias.

#49

Muitos entre estes homens, em alturas diferentes, tiveram a visão de uma manhã no futuro em que caminhariam de novo, indelevelmente assustados mas despreocupados, pela aldeia do seu país libertado. O anjo de pedra, se representa alguma coisa, representa essa manhã. 

#48

No plinto que está por baixo estão inscritos os quarenta e cinco nomes dos homens que caíram na guerra entre 1914 e 1918. No outro lado do plinto, foram acrescentados vinte e um nomes, depois da Segunda Grande Guerra. Sete entre estes últimos foram deportados e morreram nos campos de concentração alemães, outros foram mortos com metralhadoras muito perto do memorial. Todos estavam no Maquis. Alguns, antes de morrerem, foram torturados no hotel Pax, em  Annemasse, o quartel-geral local da Gestapo.  O anjo da guarda com mão de enfermeira apareceu nesse conhecido hotel ou nos campos de Mauthausen, Dachau e Auschwitz? 

#47

Um anjo de pedra branca, cujas pontas das asas se fundem, na luz de Inverno, com o alto penhasco cor de falcão que fica atrás da aldeia - este anjo de pedra segura o pulso de um soldado, cujas pernas já desistiram, e que cai para a morte.  O anjo não o salva, mas parece aliviar a queda do soldado. E no entanto, a mão que segura o pulso não tem peso e não é mais firme que a mão de uma enfermeira que mede uma pulsação. Se esta queda parece estar a ser aliviada é apenas porque ambas as figuras foram esculpidas do mesmo pedaço de pedra.

#46

Se eu retirar as cabeças da fotografia dos cinco homens na sala dos paineis de madeira, ela deixa de ser incriminadora. Só vemos as roupas curtas, as mãos, os colarinhos abertos. Mas sem cabeça, os seus corpos estão presos no presente dos seus torturadores.... Ahmed, Salib, Mehmet, Deniz, Kerime... vai acabar.

#45

Quando se diz que algo é intolerável, devem seguir-se as acções. Estas acções estão sujeitas a todas as vicissitudes da vida. Mas a esperança pura reside primeiro e misteriosamente na capacidade para nomear o intolerável como tal: e esta capacidade vem de longe - do passado e do futuro. É por isto que a política e a coragem são inevitaveis. O tempo dos torturadores é agonizante mas exclusivamente presente.

#44

Eles sabem que na Anatolia nunca houve um Inverno sem neve, um Verão sem animais que morrem da seca, um movimento operário sem repressão. As utopias existem apenas nos tapetes. Mas também sabem que aquilo a que foram sujeitos na sua vida é intolerável. E o nomear do intolerável é, em si mesmo, a esperança.

#43

Quanto esta fotografia diz sobre política! Como a politica, nas suas origens, é irreprimível. Estes cinco homens, com os seus amores, as suas crianças, as suas canções e a sua memória Anatoliana, não são os tolos de ninguém. Foram muitas vezes mal dirigidos, muitas vezes mal organizados, muitas vezes as primeiras vítimas da auto-indulgência carismática dos seus lideres, mas nada disso os surpreendeu. Do mundo presente que tão bem conhecem, não esperavam melhor.

#42

Milhares desapareceram sem notícia. Até agora, pelo menos oito morreram pela tortura. É provavel que um dos cinco para quem olho agora esteja a ser torturado hoje. O seu corpo, tão inconfundível aos olhos da sua mãe, é obrigado a sofrer o impensável.

#41

Pelo menos 50.000 pessoas foram presas. A acusação exigiu centenas de sentenças de morte - principalmente contra os sindicalistas militantes. As perseguições ao homem são tão sistemáticas como a tortura, usada na esperança de extrair mais nomes e ligações. Por isto a fotografia tornou-se incriminadora.

#40

Desde o golpe de estado de Setembro de 1980, a DISK - organização sindical de esquerda, aos quais os cinco pertenciam - foi declarada como ilegal, assim como todos os partidos políticos.

#39

Para os cinco na sala dos paineis de madeira, a resistência é mais do que um reflexo, mais do que a recusa primitiva dos músculos do que o corpo reconhece como injustiça - porque aquilo que o seu esforço está continuamente a criar é imediatamente e irremediavelmente tirado das suas maõs. A sua resistência foi montada, e entrou nos seus pensamentos, nas suas esperanças, nas suas explicações do mundo. As cinco cabeças, cujos os olhos me furam, declararam os seus corpos não só como resistentes mas militantes. 

#38

É como se um tribunal, nos momentos das suas concepções, os tivesse sentenciado a todos a ter as cabeças cortadas dos seu corpos quando tivessem quinze anos. Quando o tempo chegou, eles resistiram, e as suas cabeças permaneceram nos seus ombros. Mas a tensão e a obstinação dessa resistência manteve-se, e ainda se mantém, visível - ali, entre a nuca e as omoplatas. A maioria dos trabalhadores do mundo carrega o mesmo estigma: um sinal de como o poder do trabalho sobre os seus corpos foi arrancado das suas cabeças, onde os seus pensamentos e imaginação continuam, mas desprovidos agora de possuírem o seus próprios dias e energia no trabalho.

#37

No entanto, despidos das roupas num banho público, um polícia ou um militar não teriam dificuldade em identificá-los como trabalhadores. Mesmo que os cinco semi-cerrassem os olhos para disfarçar as suas expressões e fingissem uma indiferença louvável, a sua classe social ainda seria evidente. Mesmo que com a ajuda mágica de um certo djinn eles assumissem, com perfeição, a expressão facial típica de uma amante de um especulador- uma expressão de charme adocicado, indiferença adocicada e ganância - ainda assim, a forma como seguram as cabeças trair-los-ia.

#36

Cada um é inequivocamente ele mesmo, como aos olhos da sua mãe. Um é careca, outro tem cabelo encaracolado, dois são magros e rijos, outro tem ombros largos e bem cobertos. Todos vestem calças baratas e ávaras e casacos. Estas roupas carregam a mesma relação com os fatos da burguesia como os bairros de barracas da capital, onde os cinco vivem, carregam com as vilas com mobília francesa onde os patrões e mercadores vivem.

#35

A fotografia na mesa à minha frente tornou-se incriminadora. Melhor não a imprimir - mesmo a milhares de quilómetros da Turquia. Mostra seis homens numa fila, numa sala com paíneis de madeira, algures na periferia de Ankara. A fotografia foi tirada depois de uma reunião de um comité político, há dois anos atrás. Cinco dos homens são trabalhadores. O mais velho tem cerca de 50 anos, o mais novo está no fim dos vinte.

#34

O pulso dos mortos
tão interminavelmente
constante como o silêncio
que embolsa a candídiase.

Os olhos dos mortos
inscritos nas nossas palmas
enquanto caminhamos nesta terra
que embolsa a candídiase.

#33

Onde está Tony Goodwin agora? A sua morte proclama que ele nunca mais estará presente em lado algum: que cessou de existir. Fisicamente isto é verdade. No pomar, queimavam folhas há duas semanas atrás. Eu caminho entre as cinzas quando vou à vila. Cinzas são cinzas. A vida do Tony agora pertence, historicamente, ao passado. Fisicamente o seu corpo, reduzido pelo fogo ao elemento carbono, volta a entrar no processo físico do mundo. O carbono é o pré-requisito de qualquer forma de vida, a fonte do orgânico. Eu digo a mim mesmo estas coisas não no sentido de compor uma alquimia especial da imortalidade, mas para me fazer lembrar que é a minha visão do tempo que é impiedosamente examinada pela morte. Não adianta usar a morte para nos simplificarmos. O Tony já não está dentro do elo de tempo vivido por aqueles que, até recentemente, eram os seus contemporâneos. Ele está na circunferência desse elo (a circunferência não de um círculo mas de uma esfera) como estão os diamantes e as amebas. No entanto ele está também dentro desse elo como todos os mortos. Estão ali como todos-os-vivos-que não-o-são. Os mortos são a imaginação dos vivos. E para os mortos, ao contrário dos vivos, a circunferência da esfera não é fronteira nem barreira.

#32

Somos ambos contadores de histórias. Deitados nas nossas costas, olhamos para o céu noturno.

#31

Ser concebido era ser chamado para  surgir, para assumir uma forma. No entanto, esta existência anterior, embora informe, não era vaga nem neutra. (digo neutra em vez de neutral pois tinha uma carga sexual, a de uma sexualidade indiferenciada) Eu era desenraizado e tão inocente. Não particular e tão vulnerável. Mas também era feliz. A única imagem desta felicidade, o único contrabando que conseguia passar de volta da fronteira da total vigília não era uma imagem de mim mesmo - pois isso certamente não existia do outro lado da fronteira - mas uma imagem de algo aparentado comigo: a superfície plana de uma rocha, uma pedra sobre a qual uma pele de água fluía continuamente.

#30

Encontrava-me naquele estado entre o acordado e o dormir. Daí podes vaguear em direcção a um dos dois. Podes ir embora num sonho ou abrir os olhos, tomar consciência do teu corpo, do quarto, dos corvos a grasnar na neve lá fora. O que distingue este estado de espirito da total vigília é que aqui não existe distância entre palavra e significado. É o lugar original do nomear. E dali vi-me antes de ter nascido, mais de nove meses antes de ter nascido. A vida por vir no útero estava talvez mais longe do que a morte está agora.

#29

Tenho sempre consciência que se abrir os meus olhos, as caras desaparecem imediatamente, tornam-se ausentes. O que é menos claro para mim é o que acontece quando fecho os olhos. Sou eu que atravesso a fronteira que normalmente as exclui, ou são elas que a atravessam? Pertencem ao passado. A certeza com que sei disto não tem nada a ver com as suas roupas ou o "estilo" das suas caras. Pertencem ao passado porque estão mortas, e eu sei isto pela forma como me olham. Olham-me com algo próximo do reconhecimento. 

#28

A expressão, embora alterada pelo carácter e a idade da cara, é sempre similar. A sua intensidade não é uma questão de emoção, ou de prazer ou dor. A cara olha-me directamente e sem palavras, mas apenas com a expressão dos olhos, afirma a realidade da sua existência. Como se o olhar tivesse chamado um nome e a cara, ao devolvê-lo, estivesse a responder "Presente!"

#27

Nenhuma das caras me é familiar. Normalmente estão quietas, mas não são imagens estáticas; estão vivas. São como a cara de alguém a pensar.É visível que não estão conscientes de que estou a olhá-las.  No entanto, consigo obrigá-las a olhar para mim. "Obrigá-las" é talvez um termo demasiado forte: não requer grande esforço da minha parte. Em vez de simplesmente olhar para um grupo delas, tenho que concentrar a minha atenção numa em particular e aí, ele ou ela, como acontece frequentemente na vida quotidiana, olha e devolve o meu olhar. A distância óptica delas até mim é normalmente três ou quatro metros, mas quando uma olha de volta, a sua expressão é tal que as nossa caras podiam estar a apenas alguns centímetros de distância. 

#26

Uma vez relatei esta experiência a um amigo. Ele disse que estaria com certeza relacionada com o facto de, durante toda a minha vida - estava nos trinta quando me começou a acontecer - eu ter olhado e ter-me concentrado sobre milhares de pinturas. Parece-me provável. Mas passa ao lado da verdadeira questão, porque a principal função da pintura, até recentemente, era representar, tornar continuamente presente, o que em breve estaria ausente. 

#25

Frequentemente, quando fecho os olhos, aparecem caras à minha frente. O que é notável em relação a elas é a sua definição. Cada cara tem a nitidez de uma gravura.

#24

Assim, as pessoas vivem numa nova dimensão temporal. A vida social, que em tempos ofereceu um exemplo de relativa permanência é agora garantia da impermanência. Dada a condição actual do mundo, isto oferece uma promessa. Mas  significa igualmente que as pessoas se encontram mais sós do que eram, antes do enigma dos dois tempos das suas vidas. Já não há valor social que subscreva o tempo da consciência. Ou, para ser mais exacto, não há valor social aceite que o possa fazer. Em algumas circunstâncias - penso no Che Guevara - a consciência revolucionária assume este papel de uma nova maneira. 

#23

Desde a Revolução Francesa que a história mudou de papel. Antes era guardiã do passado: agora tornou-se a parteira do futuro. Já não fala do imutável mas, pelo contrário, das leis da mudança que não poupam nada. Por todo o lado, a história é vista como progresso, às vezes progresso sócio-político e continuamente progresso tecnológico. A história, acertadamente, oferece esperança aos desesperados e explorados que lutam por justiça. (No Terceiro Mundo, à medida que o século se aproxima do fim, esta esperança está cada vez mais a unir forças com a fé religiosa.) No mundo dos relativamente ricos, a exigência única e insaciável da história tornou-se a da obsolescência. 

#22

Quando em 1872 Marx escreveu "Um espectro assombra a Europa - o espectro do Comunismo. Todos os poderes da velha Europa entraram numa aliança sagrada para exorcizar este espectro: Papa e Czar, Metternich e Guizot, Radicais Franceses e polícias espiões Alemães", estava a fazer um aviso duplo. O ricos receavam a revolução, tal como hoje ainda receiam. O segundo aviso era de uma ordem diferente. Um relembrar que toda a sociedade moderna tem consciência da sua própria efemeridade. 

#21

Rio murmurante
agarra o nevoeiro
por um momento mais.
Os picos fazem a sua assinatura
no céu.
Pára e ouve
as máquinas do leite
desenhadas para mamar como vitelos.
No primeiro calor
as colinas florestadas calculam
o seu declive.
O condutor da camioneta vai pela estrada
que vai dar ao passe que leva
surpreendentemente
com a sua própria familiaridade
a outra pátria.
Em breve a relva será
mais quente
que os cornos das vacas.
O inesperado vem
ao nosso encontro
batedor da morte e da vida.

#20

O que surpreende não pode ser
a sobra do que foi.
O amanhã ainda cego
avança devagar.
A visão e a luz
correm ao encontro uma da outra,
e do seu abraço
nasce o dia,
olhos abertos
alto como um potro.

#19

Na realidade, estamos sempre entre dois tempos: o do corpo e o da consciência. Daí a distinção feita em todas as outras culturas entre corpo e alma.  A alma é primeiramente, e acima de tudo, o lugar de outro tempo.

#18

A explicação dada pela cultura europeia contemporânea - que, durante os últimos dois séculos, tem marginalizado cada vez mais outras explicações - é a que constroi uma lei de tempo uniforme, abstracta e unilinear aplicável  a todos os eventos, e de acordo com a qual todos os "tempos" podem ser comparados e regulados. Esta lei mantém que o Grande Carro e a fome pertencem ao mesmo cálculo, um cálculo que é indiferente a ambos. Também defende que a consciência humana é um evento, situado no tempo, como qualquer outro. Assim, uma explicação cujo objectivo é "explicar" o tempo da consciência, trata essa consciência como se fosse passiva qual estrato geológico. Se o homem moderno tornou-se muitas vezes vítima do seu próprio positivismo, o processo começa aqui com a negação ou a abolição do tempo criado pelo evento da consciência.

#17

O primeiro tempo compreende-se a si mesmo. É por isso que os animais não têm problemas filosóficos. O segundo tempo tem sido compreendido de maneiras diferentes em períodos diferentes. De facto, é a primeira tarefa de qualquer cultura propôr um entendimento do tempo da consciência, das relações do passado com o futuro compreendidas como tal.

#16

O homem é único na medida em que constitui dois eventos. O evento do seu organismo biológico - e nisto é como a tartaruga e a lebre - e o evento da sua consciência. Portanto, no homem, coexistem dois tempos, que correspondem a estes dois eventos. O tempo durante o qual ele é concebido, cresce, amadurece, envelhece, morre. E o tempo da sua consciência.

#15

A esperança de vida de uma lebre por um lado e de uma tartaruga por outro está prescrita nas suas células. A provável duração de uma vida é uma dimensão da sua estrutura orgânica. Não há forma de comparar o tempo da lebre com o da tartaruga excepto se usarmos uma abstracção que não tem nada a haver com nenhuma delas. O homem introduziu esta abstracção e organizou uma corrida para descobrir qual das duas chegava ao posto final primeiro.

#14

A fome é um conjunto trágico de eventos. Aos quais o Grande Carro é indiferente, existindo como existe num outro tempo.

#13

O problema do tempo é como a escuridão do céu. Cada evento está inscrito no seu próprio tempo. Os eventos podem aglomerar-se e os seus tempos sobreporem-se, mas o tempo comum entre eventos não se prolonga como lei além da aglomeração.

#12

Somos ambos contadores de histórias. Deitados de costas, olhamos para o céu noturno. Aqui é onde as histórias começam, debaixo da égide dessa multidão de estrelas que à noite furtam certezas e às vezes as devolvem como fé. Os que primeiro inventaram e depois nomearam as constelações eram contadores de histórias. Traçar uma linha imaginária entre um aglomerado de estrelas deu-lhes uma imagem e uma identidade. As estrelas enfiadas nessa linha eram como eventos numa narrativa. Claro que imaginar as constelações não mudou as estrelas nem a escuridão vazia que as rodeava. O que mudou foi a maneira como as pessoas liam a noite.

#11

No quarto coloquei-o numa folhas, no cimo da cómoda. Quando apaguei a luz, o pirilampo voltou a brilhar. Nas parte de trás do toucador havia um espelho virado para a janela. Se me deitasse de lado, via uma estrela reflectida no espelho e o pirilampo por baixo, na cómoda. A única diferença entre ambos era que a luz do pirilampo era um pouco mais verde, mais glaciar, mais longínqua.

#10

Uma noite, a andar pelo campo perto de Prijedor na Bósnia, encontrei um pirilampo, com a sua luz verde-âmbar, debaixo de umas ervas. Agarrei-o e levei-o no meu dedo onde brilhava como uma opala num anel. Quando me aproximei da casa, as outras luzes eram muito fortes e apagaram a dele.

#9

Desta vez era só o pato, parado, no meio da estrada, a sacudir com as patas o pó, com a cabeça baixa. Demorou cerca de um minuto para me aperceber que estava às costas da pata, esta totalmente invisivel. Estendeu as asas uma ou duas vezes que apareceram debaixo das patas dele, antes de  se sentar de novo, no pó. As estocadas dele tornaram-se mais rápidas. Finalmente, tendo atingido o climax, o pato caiu da pata, que se tornou visível. Ele caiu pelo lado, para a estrada. Caiu como se tivesse levado um tiro, deitado de lado. Um pequeno saco cinzento com a forma de um pássaro, inerte na estrada, como se cheio de chumbo. Ela olhou à volta, levantou-se, bateu as asas, esticou o pescoço e partiu, confiante que as crias iriam encontrá-la.

#8

Tinha visto a família toda várias vezes. Instalavam-se frequentemente num monte de relva debaixo dos arbustos, no lado oposto ao cemitério. A primeira vez que vi as luzes do cemitério ao nascer do dia, reparei nos patos a andar na relva verde-noite. Uma pata, um pato e seis patinhos.

#7

Uma aldeia nas colinas, não muito longe de Pistoria. O cemitério da aldeia era rectangular, rodeado por paredes altas, com portões de ferro forjado. À noite a maioria das tumbas estavam iluminadas, cada uma com uma vela. Mas as velas eram eléctricas, e eram ligadas com as luzes da rua. Ardiam toda a noite e eram muito mais do que os candeeiros de rua na aldeia. Passando o cemitério, a estrada levava a uma quinta. Nesta estrada de pó eu vi  um dos patos cinzentos. 

#6

O animal a seguir é um gato. Um gato completamente branco. Pertencia a uma cozinha com um chão desnivelado, uma chaminé aberta, uma mesa de madeira partida e paredes brancas rugosas. Contra as paredes, o gato era quase invisível, excepto pelos seus olhos negros. Quando virava a cabeça, desaparecia na parede. Quando saltava pelo chão ou para a mesa, era como uma criatura que tivesse escapado das paredes. A maneira como aparecia e desaparecia dava-lhe a intimidade misteriosa de um deus doméstico. Eu sempre achei que os deuses das casas são animais. Uma vezes visíveis, outras invisíveis, mas sempre presentes. Quando me sentava à mesa, o gato saltava-me para as pernas. Tinha dentes brancos afiados, tão brancos quanto o pelo. E uma língua cor-de-rosa. Como todos os gatos, jogava continuamente: com a própria cauda, com as costas das cadeiras, com restos no chão. Quando queria descansar procurava alguma coisa macia para se deitar nela. E olhando-o, fascinado, por uma semana, eu observei que sempre que podia escolhia algo branco - uma toalha, uma camisola, roupa lavada. Depois, com os olhos e a boca fechados, enrolado, tornava-se invisivel, rodeado de paredes brancas.

#5

Momentos mais tarde, a lebre voltou a correr para a estrada, desta vez perseguida por meia dúzia de homens, que ainda assim corriam muito mais devagar que ela e que tinham o ar de terem acabado de se levantar de uma refeição. A lebre correu para cima, em direcção aos penhascos e ao primeiro pedaço de neve. O alfandegário gritava instruções para a apanharem - e eu segui caminho, e passei a fronteira.

#4

ERA UMA VEZ 
 
O primeiro era uma lebre. A dois mil metros numa fronteira da montanha. Onde é que vais? perguntou o oficial da alfândega francesa. Para Itália, respondi. Porque é que não paraste? perguntou. Pensei que me chamarias, respondi. E nesse momento tudo foi esquecido porque uma lebre atravessou a estrada a correr, dez jardas à nossa frente. Era uma lebre magra, com tufos da cor de fumo castanho na ponta das orelhas. E embora corresse devagar, corria pela sua vida. Às vezes isso pode acontecer.

#3

A Parte Um é sobre o Tempo
A Parte Dois é sobre o Espaço


1/ 


Quando abro a minha carteira
para mostrar os meus documentos
para pagar
ou ver o horário de um comboio
olho para a tua cara.


O polén das flores 
é mais antigo do que as montanhas
Aravis é novo
para uma montanha.


Os óvulos das flores 
ainda darão sementes
quando Aravis, agora envelhecido
não for mais que uma colina.


A flor é o coração
da carteira, a força
que nos deixa
viver além da montanha.
E as nossas caras, meu coração, breves como fotografias.