#76

Uma pessoa pode sentir-se tentada a dizer que as pinturas preservam um momento. No entanto reflectindo melhor, isso não é obviamente verdade. Pois o momento da pintura, contrariamente ao momento fotografado, nunca existiu como tal. Logo não se pode dizer que uma pintura o preserve.

#75

UMA VEZ NUMA PINTURA


As pinturas são estáticas. A singularidade da experiência de olhar uma pintura repetidamente - por um período de dias ou anos - é que, no meio do fluxo, a imagem mantém-se inalterada. Claro que o significado da imagem pode mudar, resultado de eventos históricos ou pessoais, mas o que é representado é imutável: o mesmo leite jorra do mesmo jarro, as ondas do mar têm exactamente as mesmas formações por rebentar, o sorriso e a cara que não se alteram.

#74

Ela ainda não dormiu. O seu olhar segue-o enquanto ele se aproxima. Na cara dela estão os dois reunidos. Agora é impossível separar as duas imagens: a imagem dele dela na cama, como ele a recorda: a imagem dela dele enquanto o vê a aproximar-se da cama. É de noite.

#73

Inclinada para a frente sobre as almofadas, ela levanta as cortinas com a parte de trás da mão, pois a palma, a cara da mão, está já a dar as boas vindas, já a fazer um gesto que é preparatório do acto de tocar a cabeça dele. 

#72

Um colar está pendurado sobre os peitos dela, 
e entre eles demora-se -
no entanto, é uma demora
e não uma chegada incessante? -
o perfume do para sempre.
Um perfume tão antigo como o sono,
tão familiar aos vivos como aos mortos.

#71

À noite, eles abandonam o seu século.

#70

Daqui a dois anos, à luz do dia, Van Rijn vai declarar-se falido. Dez anos antes, à luz do dia, Hendrickje veio trabalhar na casa de Van Rijn como ama do seu filho bebé. À luz das obrigações morais flamengas do século XVII e do Calvinismo, a governanta e o pintor têm responsabilidades distintas e separadas. Daí a reticência.

#69



Na pintura  Mulher na Cama há uma cumplicidade entre mulher e pintor. Esta cumplicidade inclui reticência e abandono, dia e noite. A cortina da cama, que Hendrickje levanta com a sua mão, marca a fronteira entre o tempo do dia e o tempo da noite.

#68

Existem outras pinturas de Hendrickje. Perante a "Bathsheba" no Louvre, ou a "Woman Bathing" na National Gallery (Londres) quedo-me mudo. Não porque a sua genialidade me iniba, mas porque a experiência da qual derivam e que expressam - o desejo a experimentar-se a si mesmo como algo tão antigo como o mundo, a ternura a experimentar-se como o fim do mundo, a redescoberta infinita dos olhos, como se fosse a primeira vez, do seu amor por um corpo familiar - tudo isto vem e vai além das palavras. Nenhumas outras pinturas nos levam tão habilmente e poderosamente, ao silêncio. No entanto, em ambas, Hendrickje está absorvida nas suas acções. Na visão do pintor sobre ela há a maior intimidade, mas não há uma intimidade mútua entre ambos. São pinturas que falam do amor dele, não do dela.

#67

A Mulher na Cama (de Edinburgh) foi pintada, pelas minhas contas, um pouco antes ou um pouco depois do nascimento de Cornelia. Os historiadores sugerem que talvez seja um fragmento tirado de um trabalho maior que representaria a noite de casamento de Sarah e Tobias. Um tema bíblico, para Rembrandt, era sempre contemporâneo. Se é um fragmento, é certo que Rembrandt o terminou, e o entregou finalmente ao espectador, como a sua pintura mais íntima da mulher que amava.

#66

Ela tinha menos dez ou doze anos que ele. Quando ela morreu tinha, pela evidência da pintura, pelo menos quarenta e cinco anos, e quando ele a pintou pela primeira vez não teria mais do que vinte e sete anos. A filha de ambos, Cornelia, foi baptizada em 1654. Isto significa que Hendrickje deu à luz a filha quando estava na casa dos trinta.

#65

Uma vez em Amesterdão


É estranho como, às vezes, os historiadores de arte ao tentar datar algumas pinturas, dão tanta atenção ao "estilo", aos inventários, aos recibos, às listas de leilões e tão pouco à evidência pintada da idade do modelo. Como se não confiassem no pintor neste ponto. Por exemplo, quando tentam datar e organizar cronologicamente as pinturas de Hendrickje Stoffels do Rembrandt. Nenhum pintor foi mais conhecedor do processo do envelhecimento e mais nenhum pintor nos deixou um registo tão intimista do grande amor da sua vida. O que quer que as conjunturas documentais digam, as pinturas deixam claro que o amor entre Hendrickje e o pintor durou cerca de vinte anos, até à morte dela, seis anos antes da dele.



#64

Falar da promessa da poesia seria enganador, pois uma promessa projecta-se no futuro e é precisamente a coexistência do futuro, do presente e do passado que a poesia propõe. Uma promessa que se aplica ao presente e ao passado assim como ao futuro deve antes ser chamada de garantia.

#63

Se a poesia por vezes fala da sua própria imortalidade, é uma afirmação mais vasta que a do génio de um poeta em particular numa história cultural particular. A imortalidade aqui deve distinguir-se da fama póstuma. A poesia pode falar da imortalidade porque se abandona à linguagem, na crença de que a linguagem abarca toda a experiência, o passado, o presente e o futuro.

#62

O poeta coloca a linguagem além do alcance do tempo: ou, mais precisamente, o poeta aproxima-se da linguagem como se esta fosse um lugar, um ponto de encontro, onde o tempo não tem finalidade, onde o tempo é englobado e contido.

#61

Que um poema possa usar as mesmas palavras que um relatório de uma empresa não significa mais do que o facto que um farol e uma cela de prisão possam ser construídos com blocos de pedra da mesma pedreira, juntos pela mesma argamassa. Tudo depende da relação entre as palavras. E a soma total de todas as possíveis relações depende de como o escritor se relaciona com a linguagem, não como vocabulário, nem como sintaxe, nem mesmo como estrutura, mas como princípio e presença.

#60

No entanto a poesia usa as mesmas palavras, e mais ou menos a mesma sintaxe que, por exemplo, o Relatório Geral Anual de uma corporação multinacional. (Corporações que preparam, para o seu próprio lucro, alguns dos mais terríveis campos de batalha do mundo moderno). Então como pode a poesia transformar tanto a linguagem que, em vez de apenas comunicar informação, ouve e promete e preenche o papel de um deus?

#59

Os poemas estão mais próximos de orações do que de histórias, mas na poesia não há ninguém a quem se reze além da linguagem. É a linguagem em si mesma que deve ouvir e reconhecer. Para o poeta religioso, a Palavra é o primeiro atributo de Deus. Em toda a poesia as palavras são uma presença antes de serem um meio de comunicação.