#99

O que nos separa dos personagens sobre os quais escrevemos não é o conhecimento, seja este subjectivo ou objectivo, mas a experiência deles do tempo, na história que estamos a contar. Esta separação dá-nos, a nós contadores, o poder de saber o todo. No entanto, esta separação deixa-nos igualmente sem poderes: não podemos controlar os nossos personagens, depois da narração ter começado. Somos obrigados a segui-los, através e no tempo, no qual eles estão a viver e que nós controlamos.





#98

A noção de que a vida, vivida, é uma história, é uma noção recorrente. O racionalismo rejeitou esta noção propondo a inelutável mecanicidade das leis da natureza. A maioria das investigações científicas recentes tendem a sugerir que o trabalho natural dos processos do universo se parecem mais com os de um cérebro que de uma máquina. Pensar um tal "cérebro" como um narrador - embora muitos cientistas acusem este pensamento de ser demasiado antropomórfico - tornou-se possível. A metafísica do contar histórias deixou de ser apenas uma preocupação literária.



#97

É por isto que o tráfego entre o contar de histórias e a metafisica é contínuo.

#96

UMA VEZ ATRAVÉS DE UMA LENTE

Imaginemos que uma personagem de uma das histórias que tu e eu escrevemos, tenta num dado momento da história, imaginar a sua origem e antever além do que sabe do seu destino . As suas perguntas, as suas especulações leva-lo-iam a hipóteses (infinito, acaso, indeterminação, livre arbítrio, espaço e tempo curvos...) muito semelhantes aos que os pensadores chegam quando especulam sobre o universo.

#95

Tudo estava a mudar. As três pereiras, o outeiro delas, o outro lado do vale, os campos cultivados, as florestas. As montanhas eram maiores, todas as árvores e campos mais próximos. Tudo o que era visível se aproximou de mim. Ou melhor, tudo se aproximou do lugar onde eu tinha estado, pois eu já não estava ali. Eu estava em todo o lado, tanto na floresta do outro lado do vale como na pereira morta, tanto na face da montanha como no campo onde colhia o feno.

#94

Até te conhecer não teria sido capaz de nomear a transformação que estava a acontecer. Hoje, com a minha idade avançada, eu nomeio-a - a fusão do amor.
 
 

#93

As três pereiras pareciam diferentes. A articulação de cada ramo tinha-se tornado aparente, eu conseguia ver como cada folha se movia. (durante toda a tarde os ventos do sul e do norte concorreram um com o outro em brisas gentis e breves, raramente maiores que um fôlego.) O chão debaixo das pereiras tinha mudado.

#92

Quando um homem surpreende um animal, ou vice versa, o rastro do seu olhar exclui momentaneamente tudo o resto. Foi assim, exceptuando que entre o animal e o homem há normalmente uma igualdade na presença, e ali estava eu consciente de uma desigualdade. Eu estava menos presente que o canto da paisagem que me observava.

#91

Pouco depois tive a sensação de que estava a ser observado. Por um instante acreditei que alguém estava no outeiro, ou que um rapaz tinha subido a uma das pereiras. A morta estava ladeada pelas duas vivas. Mas não estava lá ninguém.

#90

Este pequeno canto de paisagem - no qual eu nunca tinha reparado em particular - chamou-me a atenção e agradou-me. Agradou-me como uma cara em particular que vemos passar numa rua, desconhecida, até vulgar, mas que por alguma razão agrada por causa do que sugere sobre uma vida que está a ser vivida.

#89

UMA VEZ NA VIDA



Começou com um pequeno outeiro, um pouco acima e para norte do campo onde eu colhia o feno. Neste outeiro estavam três pereiras abandonadas, duas em plena folhagem e a outra com a madeira cinzenta, sem folhas e morta. Atrás delas, o céu azul com grandes nuvens brancas.

#88

Um marinheiro recebe uma carta
de mil versts de distância.
A mulher escreveu
que na casa deles
atrás das colinas
ela é feliz.

E é a carta dela
durante as noites com raparigas
em portos intraduziveis,
através do mar dos meses
que persuade o marinheiro maldito
que a sua viagem sem fim
vai acabar.

#87

A linguagem da arte pictórica, porque é estática, é a linguagem dessa intemporalidade. Mas aquilo de que fala - ao contrário da geometria - é do sensual, do particular e do éfemero.

#85

Os termos desta explicação parecem-se ser demasiado restritivos e ao mesmo tempo demasiado estéticos. Tem que haver valor neste contraste flagrante: o contraste entre a forma pintada imutável e a dinâmica do modelo vivo.

#84

Uma composição musical, sendo que usa o tempo, é obrigada a um princípio e um fim. Uma pintura só tem princípio e fim porque é um objecto físico: dentro do seu imaginário não há princípio nem fim. É isto que torna possível a composição pictórica, a harmonia e a forma.

#83

Dizer que as pinturas profetizam a experiência de serem olhadas não responde à questão. Tais profecias assumem um interesse contínuo na imagem estática. Porque é que, pelo menos até recentemente, tal assunção é justificável? A resposta convencional é que, por ser estática, a pintura tem o poder de estabelecer uma harmonia visual "palpavél". Só algo estático pode ser simultaneamente composto e desta forma completo.

#82

Contudo porque é que as imagens estáticas da pintura são tão imperativas? O que previne a pintura de ser evidentemente inadequada - só porque é estática?

#81

Todas as pinturas acabadas, tenham um ou cinco anos, são agora profecias recebidas do passado, sobre aquilo que o espectador está a ver na tela no presente momento. Às vezes a profecia gasta-se rapidamente - a pintura perde o seu foco; outras vezes mantém-se verdade persistentemente.

#80

Alguns pintores quando estão a trabalhar têm o hábito de estudar a sua pintura no espelho, quando esta já alcançou um determinado estádio. O que eles vêm é a imagem invertida. Quando questionados sobre como é que isto os ajuda, dizem que lhes permite olhar a pintura de novo, com um olho mais fresco. O que vislumbram no espelho é talvez um pouco o aspecto da pintura nesse momento futuro ao qual ele se dirige.

#79

O pintor ser um simples praticante ou um mestre não faz qualquer diferença neste destino da pintura. A diferença está naquilo que a pintura dá: em quão perto o momento em que é olhada, tal como previsto pelo pintor, corresponde aos interesses dos momentos em que é olhada por outras pessoas, quando as circunstâncias que rodeiam a sua produção (mecenato, moda, ideologia) foram alterados.

#78

Quando é que uma pintura está finalmente acabada? Não quando corresponde a alguma coisa que já existe - como o segundo sapato do par - mas quando o momento ideal em que vai ser olhada está preenchido, tal como o pintor o sente ou calcula que deve ser. O processo, curto ou longo, de pintar uma pintura é o processo da construção desse momento. Claro que o-momento-em-que-a-pintura-é-olhada não pode ser completamente previsto e desta forma completamente preenchido pela pintura. No entanto toda a pintura é, pela sua própria natureza, destinada a esse momento.  

#77

Na arte Renascentista inicial, nas pinturas de culturas não-europeias, em certas obras modernas, a imagem implica uma passagem de tempo. Olhando para ela, o espectador vê o Antes, o Durante e o Depois. O sábio chinês caminha de uma árvore para outra, a carruagem atropela a criança, o nu desce as escadas.  No entanto, as imagens seguintes são ainda estáticas quando se referem ao mundo dinâmico além das suas arestas e isto coloca o problema de qual o significado deste estranho contraste entre o estático e o dinâmico. Estranho porque é ao mesmo tempo flagrante e tido como certo.