#30

Encontrava-me naquele estado entre o acordado e o dormir. Daí podes vaguear em direcção a um dos dois. Podes ir embora num sonho ou abrir os olhos, tomar consciência do teu corpo, do quarto, dos corvos a grasnar na neve lá fora. O que distingue este estado de espirito da total vigília é que aqui não existe distância entre palavra e significado. É o lugar original do nomear. E dali vi-me antes de ter nascido, mais de nove meses antes de ter nascido. A vida por vir no útero estava talvez mais longe do que a morte está agora.

#29

Tenho sempre consciência que se abrir os meus olhos, as caras desaparecem imediatamente, tornam-se ausentes. O que é menos claro para mim é o que acontece quando fecho os olhos. Sou eu que atravesso a fronteira que normalmente as exclui, ou são elas que a atravessam? Pertencem ao passado. A certeza com que sei disto não tem nada a ver com as suas roupas ou o "estilo" das suas caras. Pertencem ao passado porque estão mortas, e eu sei isto pela forma como me olham. Olham-me com algo próximo do reconhecimento. 

#28

A expressão, embora alterada pelo carácter e a idade da cara, é sempre similar. A sua intensidade não é uma questão de emoção, ou de prazer ou dor. A cara olha-me directamente e sem palavras, mas apenas com a expressão dos olhos, afirma a realidade da sua existência. Como se o olhar tivesse chamado um nome e a cara, ao devolvê-lo, estivesse a responder "Presente!"

#27

Nenhuma das caras me é familiar. Normalmente estão quietas, mas não são imagens estáticas; estão vivas. São como a cara de alguém a pensar.É visível que não estão conscientes de que estou a olhá-las.  No entanto, consigo obrigá-las a olhar para mim. "Obrigá-las" é talvez um termo demasiado forte: não requer grande esforço da minha parte. Em vez de simplesmente olhar para um grupo delas, tenho que concentrar a minha atenção numa em particular e aí, ele ou ela, como acontece frequentemente na vida quotidiana, olha e devolve o meu olhar. A distância óptica delas até mim é normalmente três ou quatro metros, mas quando uma olha de volta, a sua expressão é tal que as nossa caras podiam estar a apenas alguns centímetros de distância. 

#26

Uma vez relatei esta experiência a um amigo. Ele disse que estaria com certeza relacionada com o facto de, durante toda a minha vida - estava nos trinta quando me começou a acontecer - eu ter olhado e ter-me concentrado sobre milhares de pinturas. Parece-me provável. Mas passa ao lado da verdadeira questão, porque a principal função da pintura, até recentemente, era representar, tornar continuamente presente, o que em breve estaria ausente. 

#25

Frequentemente, quando fecho os olhos, aparecem caras à minha frente. O que é notável em relação a elas é a sua definição. Cada cara tem a nitidez de uma gravura.

#24

Assim, as pessoas vivem numa nova dimensão temporal. A vida social, que em tempos ofereceu um exemplo de relativa permanência é agora garantia da impermanência. Dada a condição actual do mundo, isto oferece uma promessa. Mas  significa igualmente que as pessoas se encontram mais sós do que eram, antes do enigma dos dois tempos das suas vidas. Já não há valor social que subscreva o tempo da consciência. Ou, para ser mais exacto, não há valor social aceite que o possa fazer. Em algumas circunstâncias - penso no Che Guevara - a consciência revolucionária assume este papel de uma nova maneira. 

#23

Desde a Revolução Francesa que a história mudou de papel. Antes era guardiã do passado: agora tornou-se a parteira do futuro. Já não fala do imutável mas, pelo contrário, das leis da mudança que não poupam nada. Por todo o lado, a história é vista como progresso, às vezes progresso sócio-político e continuamente progresso tecnológico. A história, acertadamente, oferece esperança aos desesperados e explorados que lutam por justiça. (No Terceiro Mundo, à medida que o século se aproxima do fim, esta esperança está cada vez mais a unir forças com a fé religiosa.) No mundo dos relativamente ricos, a exigência única e insaciável da história tornou-se a da obsolescência. 

#22

Quando em 1872 Marx escreveu "Um espectro assombra a Europa - o espectro do Comunismo. Todos os poderes da velha Europa entraram numa aliança sagrada para exorcizar este espectro: Papa e Czar, Metternich e Guizot, Radicais Franceses e polícias espiões Alemães", estava a fazer um aviso duplo. O ricos receavam a revolução, tal como hoje ainda receiam. O segundo aviso era de uma ordem diferente. Um relembrar que toda a sociedade moderna tem consciência da sua própria efemeridade. 

#21

Rio murmurante
agarra o nevoeiro
por um momento mais.
Os picos fazem a sua assinatura
no céu.
Pára e ouve
as máquinas do leite
desenhadas para mamar como vitelos.
No primeiro calor
as colinas florestadas calculam
o seu declive.
O condutor da camioneta vai pela estrada
que vai dar ao passe que leva
surpreendentemente
com a sua própria familiaridade
a outra pátria.
Em breve a relva será
mais quente
que os cornos das vacas.
O inesperado vem
ao nosso encontro
batedor da morte e da vida.

#20

O que surpreende não pode ser
a sobra do que foi.
O amanhã ainda cego
avança devagar.
A visão e a luz
correm ao encontro uma da outra,
e do seu abraço
nasce o dia,
olhos abertos
alto como um potro.

#19

Na realidade, estamos sempre entre dois tempos: o do corpo e o da consciência. Daí a distinção feita em todas as outras culturas entre corpo e alma.  A alma é primeiramente, e acima de tudo, o lugar de outro tempo.

#18

A explicação dada pela cultura europeia contemporânea - que, durante os últimos dois séculos, tem marginalizado cada vez mais outras explicações - é a que constroi uma lei de tempo uniforme, abstracta e unilinear aplicável  a todos os eventos, e de acordo com a qual todos os "tempos" podem ser comparados e regulados. Esta lei mantém que o Grande Carro e a fome pertencem ao mesmo cálculo, um cálculo que é indiferente a ambos. Também defende que a consciência humana é um evento, situado no tempo, como qualquer outro. Assim, uma explicação cujo objectivo é "explicar" o tempo da consciência, trata essa consciência como se fosse passiva qual estrato geológico. Se o homem moderno tornou-se muitas vezes vítima do seu próprio positivismo, o processo começa aqui com a negação ou a abolição do tempo criado pelo evento da consciência.

#17

O primeiro tempo compreende-se a si mesmo. É por isso que os animais não têm problemas filosóficos. O segundo tempo tem sido compreendido de maneiras diferentes em períodos diferentes. De facto, é a primeira tarefa de qualquer cultura propôr um entendimento do tempo da consciência, das relações do passado com o futuro compreendidas como tal.

#16

O homem é único na medida em que constitui dois eventos. O evento do seu organismo biológico - e nisto é como a tartaruga e a lebre - e o evento da sua consciência. Portanto, no homem, coexistem dois tempos, que correspondem a estes dois eventos. O tempo durante o qual ele é concebido, cresce, amadurece, envelhece, morre. E o tempo da sua consciência.

#15

A esperança de vida de uma lebre por um lado e de uma tartaruga por outro está prescrita nas suas células. A provável duração de uma vida é uma dimensão da sua estrutura orgânica. Não há forma de comparar o tempo da lebre com o da tartaruga excepto se usarmos uma abstracção que não tem nada a haver com nenhuma delas. O homem introduziu esta abstracção e organizou uma corrida para descobrir qual das duas chegava ao posto final primeiro.

#14

A fome é um conjunto trágico de eventos. Aos quais o Grande Carro é indiferente, existindo como existe num outro tempo.