#124

De agora em diante, só alguém  a quem adiaram a sentença de morte pode imaginar a vida como uma dádiva. E a aposta famosa de Pascal - Deus pode não existir, podemos estar perdidos, mas supondo que existe... - é um estratagema para afirmar esta sentença de morte e depois ter a esperança de uma prorrogação.

A era moderna da quantificação começa com a álgebra e as série infinitas. Segue-se que já não contamos o que temos, mas o que não temos. Tudo se perde.

O conceito da entropia é a figura da Morte traduzida num princípio cientifico. No entanto onde a morte era pensada como a condição da vida, a entropia, é mantido, vai eventualmente esgotar e extinguir, não apenas vidas, mas a vida em si. E a entropia, como lhe chamou Eddington, é a "seta do tempo".

#123

No séc. XVII, Pascal reconheceu a extensão da ruptura sem precedentes, causada pelos novos cáculos. Com o avanço  impiedoso do tempo e do espaço, o passado perde-se e cai no nada. ( a palavra  neant é usada pela primeira vez no sentido absoluto, no séc. XVII). Deus abandona a vida, para habitar o domínio eterno da morte. Não mais presente no ciclos do tempo, não mais o  eixo destes ciclos, torna-se uma presença em espera e ausente. Todos os cálculos sublinham quanto é que ele já esperou ou vai esperar. As provas da sua existência deixam de ser a manhã, a estação do ano que volta, o recém-nascido; tornam-se antes a "eternidade" do céu e do inferno e a finalidade do último julgamento. O homem fica condenado ao tempo, que já não é uma condição da vida e logo algo sagrado, mas o princípio inhumano que não poupa nada. O tempo transforma-se tanto numa sentença e como num castigo.

#122

Para medir as distâncias astronómicas modernas, usamos como unidade a distância que a luz viaja num ano. A magnitude destas distâncias, o grau de separação que implicam, parece quase ilimitada; a magnitude e o grau escapam a tudo, excepto ao puro cálculo e até este tem a qualidade de uma explosão. No entanto, escondido no sistema conceptual que permite ao homem medir e conceber tal  ilimitação, está o ano, unidade local e cíclica , que pode ser reconhecida pela sua permanência, repetição e consistência local. O cálculo volta do astronómico para o local, como um filho pródigo.

Esta fraqueza da mente, esta nostalgia que não pode nem vai abandonar o aqui e agora, pode ser interpretada de duas maneiras. Pode ser vista como a revelação de uma fraqueza que prova o quão perdido e impotente o homem está no universo; ou pode ser vista como o vestígio, preservado na estrutura da mente humana, da verdade original.

#121

A corrente principal do pensamento moderno retirou o tempo da sua unidade e transformou-o numa força activa todo-poderosa e singular. Ao fazê-lo, transferiu o carácter espectral da morte para a noção de tempo em si. O Tempo tornou-se a Morte, triunfante sobre tudo.

#120

Mais cedo, no entanto, a morte era também pensada como a companheira da vida, como a pré condição do que se fez Ser do Não-ser; uma não era possível sem a outra. Como resultado, a morte foi qualificada por aquilo que não podia destruir ou aquilo que não retornaria.


A brevidade da vida é continuamente lamentada. O tempo era o agente da morte e um dos constituintes da vida. Mas o eterno - o que a morte não pode destruir - era outro. Todas as visões cíclicas do tempo mantêm estes constituintes juntos: a roda que gira e o chão no qual roda.

#119

Antes, a dimensão insubmissa era permitida. Está presente em todas as visões cíclicas do tempo. Nesse dias, o tempo passava, ia, e fazia-o apenas por rodar sobre si mesmo, como uma roda. No entanto, para uma roda girar tem que haver uma superfície como o chão que resiste, que oferece atrito. Foi contra esta resistência que a roda rodou. Visões cíclicas do tempo são baseadas num modelo onde estão em jogo duas forças: a força tempo a mover-se numa direcção, e a força resistente a esse movimento.

O corpo envelhece. O corpo prepara-se para morrer. Nenhuma teoria do tempo oferece um adiamento. A morte e o tempo foram sempre aliados. O tempo leva mais ou menos lentamente: a morte mais ou menos de repente.

#118

O conteúdo do tempo, o que o tempo carrega, parece implicar outra dimensão. Quer lhe chamemos a quarta, a quinta ou até (em relação ao tempo) a terceira não é importante, e depende apenas do modelo espaço-tempo que estamos a usar. O que importa é que a dimensão é insubmissa ao fluir regular e uniforme do tempo. Pode haver uma percepção na qual o tempo não varre tudo à sua frente. Assegurar que o faz foi um artigo de fé específico do século dezanove.

#117


Quanto mais profunda a experiência de um momento, maior a acumulação de experiência. É por isto que o momento é vivido como mais longo. Verifica-se a dissipação do fluir temporal. A duração do vivido não é uma questão de comprimento mas de profundidade ou intensidade. Proust compreendeu isto.


Mas esta não é apenas uma verdade cultural. Um equivalente natural ao aumento periódico da densidade do vivido pode ser encontrado naqueles dias em que o sol e a chuva se alternam, na primavera ou no início do verão, quando as plantas crescem, de forma quase visível, alguns milímetros ou centímetros por dia. As horas de crescimento espectacular e de acumulação são desproporcionais às horas de inverno, quando a semente está inerte na terra.

#116

Apesar dos relógios e do girar regular da Terra, o tempo é experimentado como passando a diferentes ritmos. Esta impressão é normalmente rejeitada como subjectiva, porque o tempo, de acordo com a visão novecentista, é objectivo, incontestável, e indiferente: a sua indiferença não tem limites.


Mas talvez a nossa experiência do tempo não deva ser rejeitada tão rapidamente. Supondo que uma pessoa aceita os relógios, o tempo não acelera ou abranda. Mas o tempo passa a diferentes ritmos porque a nossa experiência do seu passar envolve não um mas dois processos dinâmicos opostos: a acumulação e a dissipação.

#115

De tudo o que foi herdado do século dezanove só alguns axiomas sobre o tempo passaram sem questionamento, A Esquerda e a Direita, evolucionistas, fisicistas e a maioria dos revolucionários, todos aceitaram - pelo menos a uma escala histórica - a visão novecentista de um "fluir" temporal uni-linear e uniforme. 


No entanto a noção uniforme do tempo, dentro do qual todos os eventos podem ser temporalmente relacionados, depende de uma capacidade de síntese da mente. Galáxias e partículas não propôem nada em si. Há um problema fenomelógico de base. Somos obrigados a dar inicio à experiência consciente.

#114

"O tempo do Dante é o conteúdo da história sentido como um único acto sincrónico. E inversamente, o desígnio da história é manter o tempo junto de forma a serem todos irmãos e companheiros na mesma demanda e conquista do tempo" (Osip Mandel'shtam)

#113

Talvez no começo
o tempo e o visível, 
marcadores gémeos da distância,
tenham chegado juntos,
bêbados
a bater com força à porta
antes do amanhecer.


À primeira luz ficaram sóbrios
e examinando o dia,
falaram
do distante, do passado, do invisível.
Falaram dos horizontes
que rodeiam tudo
o que ainda não desapareceu.

#112

UMA VEZ NO PASSADO
A nossa morte já é a nossa. Não pertence a mais ninguém, nem mesmo a um assassino.O que significa que já faz da vida. Não apenas no sentido em que pode ser antecipada e que nos preparamos para ela, mas no sentido em que o seu conteúdo já está, pelo menos em parte, determinado. No passado, isto era a chave da clarividência. Mais tarde, a reivindicação da liberdade desacreditou todo o determinismo. A noção de liberdade absoluta acompanhou o nascimento do tempo histórico linear. A liberdade era o único consolo. No entanto, só quando o tempo é unilinear é que a previsão de um evento futuro ou a pré-existência de um destino, implicam determinismo, e logo a perca crucial da liberdade. Se houver uma pluralidade de tempos, ou se o tempo for cíclico, a profecia e o destino podem coexistir com a liberdade de escolha. 

#111

No posto dos correios vi, no olho da minha mente, os teus dedos a desatarem o nó que dei em Auxonne.
Dez dias mais tarde parei outra vez na cidade e fui ao posto dos correios, desta vez para te mandar uma carta. Lembro-me do dia em que te enviei a encomenda e senti uma pequena dor de perda. O que tinha eu perdido? A encomenda chegou em segurança. Tinhas feito sopa com as beterrabas. E arrumaste na prateleira a garrafa de água destilada das flores de laranjeira, acima dos teus vestidos no armário. O que se tinha perdido era o pequeno futuro da encomenda. O que lamentamos nos mortos é a perca das suas esperanças. O homem-com-a-encomenda  estava como morto; não podia ter mais esperanças. O homem-com-a-carta tinha-o substituído.

#110

A primeira vez foi para te enviar uma encomenda; quando a encarregada a pesou na balança, imaginei a tuas mãos a abri-la.
"Quatro quilos e trezentas gramas"
Numa encomenda, embrulhada à mão, há uma mensagem que não pesa nada: os dedos de quem recebe podem desatar os nós dados por quem enviou.

#109


UMA VEZ EM AUXONNE

O posto de correios de Auxonne é pequeno e a encarregada tem olhos azuis. Só lá fui duas vezes.

#108

O meu coração nascido nu
foi enfaixado em canções de embalar.
Mais tarde só vestiu
poemas como roupas.
Como uma camisola
eu carregava às costas
a poesia que tinha lido.


Assim vivi por meio século
até nós nos encontrarmos mudos.


Da minha camisola nas costas da cadeira
aprendi hoje à noite
quantos anos
de decorar com o coração
eu esperei por ti.

#107

Já vivemos a experiência perfeita do não discurso. Um estado do que é contínuo. O sonho mais recente de uma linguagem ideal, que diria tudo em simultâneo, talvez comece na memória desse estado sem memórias.

#106

A inabilidade de recordar é talvez uma memória em sim mesma. Já vivemos com a experiência da não nomeação: haviam algumas forças elementares - calor, frio, dor, doçura - que eram reconheciveis. Assim como algumas pessoas. Mas não haviam verbos ou nomes. Até o primeiro pronome foi mais uma convicção que cresceu do que um facto, e por causa desta falta, as memórias (distintas do funcionamento da memória) não existiam.

#105

Ser confortado depois de chorar. As partes de baixo do estomâgo param de soprar. Uma doçura quieta, como mel liquido, acumula-se no peito. Apenas o telhado da boca continua dorido. A causa inexplicável desapareceu inexplicavelmente.

#104

Raiva. Enchendo de gritos uma caverna de medo e cólera. Os gritos, como folhas vermelhas, flutuam no ar, independentes de nós próprios, e no entanto pousam em nós, cobrem-nos a face, provocando mais gritos. 

#103

Uma vez na infância

Polegar na boca enquanto o sono chega. Como o sono, o sabor do nosso corpo envolve-nos. Nenhum mal pode vir do nosso próprio corpo.

#102

Se nós, contadores de histórias, somos Secretários da Morte, é porque, nas nossas breves vidas mortais, somos os afinadores destas lentes.